quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Agora sim!

Boas notícias!
Tenho casa!
Ufa, enfim.
Isso é tão bom que o resto anterior eu esqueci.
Mas posso contar um pouco de como estou.
No saldo do momento, estou feliz. A casa é grande, fica num bom lugar, meu quarto é claro e arejado. Minha colocataire é argeliana, mas os pais moram na Arábia Saudita. Ela é muito, muito simpática e sempre se oferece para me ajudar com o que eu preciso.
A casa estava sem móveis, então fomos comprar uma mesa para comermos, cadeiras, cortina para a banheira, coisas assim. Montamos tudo anteontem, e devo admitir que não me saí mal. Minhas mãos ficaram com bolhas, mas adoro ter esse tipo de habilidade, mesmo que isso dê ensejo à ideia de que o povo do Brasil é trabalhador braçal. Não é verdade, porque mesmo no Brasil eu sou exceção; mas me orgulho de ter aprendido com meu pai a trocar uma torneira, embora até ele hesitasse um pouco a me dar serviços que não são de mocinha.
Ontem consegui comprar uma cama e um colchão. Fui até um apartamento que era impossível de encontrar, num conjunto de prédios com uma vista incrível de toda a cidade (incrível mesmo) e fiquei pensando na questão da privatização das belas vistas. Quem não queria ter a praia na janela? Aí vem alguém, paga mais caro e coloca um prédio na frente do seu, sua janela passa a ver uma parede. Legal, né? Sei que não tem muito como evitar isso, mas é meio chato, de qualquer forma. As coisas mais bonitas deviam ser acessíveis a todos, porque mesmo que a teoria de que são raros os bons apreciadores fosse verdade, a gente nunca poderia prever em que camada social eles nascem. O moço da casa não parecia um bom apreciador. Primeiro porque aquela janela dispensava TV, mas, vá lá, questões culturais -  mas sobretudo porque, mesmo com aquela vista todos os dias, ele conseguia ser antipático. Não disse uma palavra a mais do que a necessária, parecia nervoso ou irritado, não sei se por causa do meu francês, pedi desculpas, de qualquer forma - ele disse que não era grave.
Ele levou a cama desmontada até a porta do meu prédio, eu subi com as coisas, montei a cama, limpei o quarto. Ufa, agora meu quarto até parece um quarto!
Uma belezinha.
E o colchão estava tão confortável que perdi a primeira aula da manhã. Até agora estava dormindo em um colchão inflável, então foi uma melhora significativa.
Ah, sim, vale dizer que me mudei no sábado, e antes disso passei dois dias na casa da Louisa, uma francesa que foi ao Brasil, fala português e também foi muito simpática comigo.
No domingo fui ao centro velho novamente e comi uma salada lyonaise, uma delícia. Folhas, tomate, croutons (torradinhas), bacon, um molho gostoso e - ovo pochet quentinho. Tentem o ovo pochet, ficou genial!
Tenho que experimentar mais queijos, e programar minhas viagens por aí.
Mas antes dessas despreocupações ainda devo fazer algumas coisas administrativas (entregar papéis sobre a moradia aqui e acolá) e ainda definir meus cursos.
As aulas já começaram, mas ainda não sei quais cursos fazer. Os do segundo ano são um pouco tranquilos, porque eles ainda não estudaram coisas que já estudei, mas os do terceiro ano acho que são um pouco complicados, e estou na dúvida sobre o quanto aceito me esforçar para o tanto que gostaria aprender. O primeiro é sempre pequeno demais e eu nunca limito o último. Dúvida de sempre.
Uma vez eu escolhi uma matéria difícil no Brasil. Era Husserl. Não aprendi nada. Acho que talvez valha usar isso como exemplo, para a vida. O problema é que uma vez escolhi uma matéria que parecia aula do ensino médio e também não aprendi nada. O que me faz pensar que talvez o problema seja comigo, infelizmente.
Por último, vale lembrar que estou ainda sem internet, então está um pouco difícil me comunicar. Quando abri os e-mails tinha muita propaganda e um monte de resultados de anúncios de casa, além de misturadas mensagens que não li ainda, mensagens que li e não respondi na hora, e que já respondi, etc. Nessa bagunça posso falhar em responder alguém - o que é horrível, porque realmente fico muito feliz com qualquer mensagem carinhosa. Então me perdoem, quando eu acessar a internet frequentemente eu poderei me comunicar direito. Por enquanto faço minhas aparições por aqui, sempre com saudade.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Distrações

O tempo é mesmo uma coisa engraçada, né?
Não tinha me dado conta de que já conta uma semana que não desabafo assim, à baciada.
Essa semana precisei desabafar com um e outro um pouquinho de cada vez, porque estava muito ansiosa por causa de casa.
Parece realmente difícil achar casa aqui, em plena volta às aulas. Nesse momento a maioria das casas já tem pessoas e essa minoria das pessoas que ainda não tem casa parece sozinha um enxame imenso de estudantes.
Em meio à dificuldade, fico um pouco nervosa e o nervosismo não tem muito por onde escoar - ninguém para brigar, ninguém em quem botar a culpa: só eu e eu. Daí me refugio na distração, esse analgésico universal, enquanto vou tentando fazer o possível.
A distração é uma coisa engraçada, como todo analgésico. Porque é claro que a persistência da dor não cura, mas a ausência dela também não significa muita coisa. Às vezes parar a dor te deixa mais hábil para lidar com o problema, às vezes te deixa distraído dele e o mal vai se intensificando escondido. Há que se distrair mas não tanto.
Sabendo disso, toda distração excessiva e qualquer falta de esforço causam mal estar. Que por sua vez faz com que você se permita distrações tendo em vista se sentir bem para poder resolver os problemas. É um ciclo vicioso que eu tento evitar durante toda a minha vida. Não é novidade, mas é sempre uma outra esperança de aprender um pouco.
É engraçado que a gente sabe que fica feliz quando faz nossa parte, mas mesmo assim a gente demora pra fazer nossa parte. Vai entender, né.
Está aí o motivo de eu não ter vindo dar notícias. Não podia dar notícias de minhas distrações, porque seria mais uma distração, escrever sobre o problema também não ajudaria a resolver e seria mais uma distração.  Reclamar é uma distração que a gente comete frequentemente, também, sem se dar conta de que na verdade é só outro jeito de postergar as coisas.
Mas escrevendo sinceramente, teria que entrar nesse problema de postergar problemas, e encarar problemas assim, por escrito, não é muito confortável. Eu frequentemente "encontro problema em tudo", segundo algumas pessoas - o que me traz uma espécie de orgulho de uma coragem um tanto estúpida. Mas por escrito é pior.
Porque escrever é uma coisa tão íntima para mim quanto pensar, nenhum dos dois admite algo que não seja genuinamente pessoal, mas escrever é mais grave e por isso mais difícil. Em pensando, você vai, corre, para, escolhe um caminho, volta pelo outro, conversa sozinha, dá um devolteio, passa pelo mesmo lugar de onde saiu, muda de direção e esquece tudo: ufa. Em nós uma biblioteca de Alexandria precisa também ser queimada de tempo em tempo.
Tem muita gente que diz que não precisa de psicólogo porque pode fazer sozinha essa auto-reflexão.
Eu acho que todo mundo pode fazer essa auto-reflexão, mas acho que a gente evita, na maior parte do tempo. E tem isso: por mais que a gente converse sozinha, se fixar aquela idéia promissora que te ocorreu ontem à tarde já é difícil, imagina lembrar dos problemas. Concedo um parêntese, é claro: problemas gostam de aparecer, ficam pulando na nossa frente e não deixam a gente olhar pra nada com calma. Claro que a gente lembra dos problemas.
Mas o caso é que escrever os problemas (e talvez "contar" os problemas tenha um caráter parecido) é outra coisa. Você pensa para escrever, de modo que, a rigor, não deveria escrever sobre um problema. Você já pensou, já achou uma solução - ou já descobriu que na verdade não se tratava daquele problema, e pronto, o que você escreve é uma outra coisa. É quase um parecer. Que ficará fixado para outros tempos e quiçá outras pessoas. Que perigo.
Outro parêntese, só por via das dúvidas: Claro que não falo de um problema filosófico. Convenhamos, isso é brincadeirinha. Por mais grave que seja o problema do significante e do significado, ele é um pequeno quebra-cabeças. É diferente de todas as coisas que você, sozinho, deveria ter resolvido consigo mesmo e não resolveu. É completamente diferente. É sua vida e sua estupidez, é você pequenininho e frágil. Geralmente, quando a gente chega nesse ponto, a gente para.
Se a gente está pensando, a gente dá meia volta, muda de assunto e pronto. Se a gente está contando pra alguém é mais difícil se distrair, porque tem aquela coisa da objetividade da comunicação, mas se a gente está escrevendo, aí pronto: tem que ter muita coragem para lidar com seus problemas por escrito. Acho que sou uma boa pessoa para dizer dessa dificuldade visto que meus exercícios de escrita nunca duraram muito. Mas esse encarar-se me é muito caro, pelo que vale mais do que pelo que custa, de modo que as tentativas são muito persistentes. Espero que fiquem mais perenes com o passar do tempo.
Agora você percebe, junto comigo, que a enorme digressão foi também uma distração do problema que originou a digressão. Mas como já disse: falar sobre o problema também seria uma distração, visto que esse se resolve com muitas ligações e visitas, não com reclamações.
Mas, de qualquer forma, está explicado que é difícil escrever estando nervosa, visto que há a sombra de um problema não resolvido e a culpa da distração, e que é difícil escrever algo de pessoal em geral, porque você nunca sabe quando vai dar em caminhos perigosos.
À parte dos caminhos perigosos (ao menos aparentemente), estão as coisas a fazer e as distrações dos problemas:
Quinta feira tivemos uma reunião com os intercambistas (um monte!) e soube de um teste de francês que eu teria que fazer. Fiquei com medo de me enviarem de volta ao Brasil, mas depois soube que o teste tinha a finalidade de nos colocar na turma mais adequada, apenas. Ufa. Depois só fiquei com medo de acertar por acaso algumas questões (porque muitas eu respondi pelo bom senso da eufonia) e acabar indo para uma turma muito difícil. Mas acho que não acontece.
Sexta fui ver a acolhida dos alunos da filosofia, e descobri que eles têm milhões de aulas. É bem ativo o curso, deu vontade de fazer muitas matérias (já passou) e pude entender mais coisas do que eu esperava, do francês.
Tenho andado muito de bicicleta e tem feito muito calor. Domingo fui à abertura da bienal da dança, é meio que um desfile de carnaval feito em casa. Dança, dança, não tem muita. Mas tem sua graça, ver que eles conseguem criar um universo onírico com papel, pano e balões coloridos. Depois encontrei um colega do Brasil e sua namorada, ficamos conversando um tempão, misturando francês, inglês e português. Essas tentativas de entender as pessoas são ótimas.
Está um pouco mais fácil compreender as pessoas e falar algumas coisas agora.
Mas às vezes parece que o abismo entre o que é nosso e o que é estrangeiro é intransponível.
Não sei, sempre tive um problema com a intersubjetividade, com a comunicação, como se o mundo de cada um fosse muito particular e inalcançável... Não deixo de ter essa impressão, mas não dá para negar que temos lugares comuns culturais que tornam a intersubjetividade mais fácil entre pessoas que compartilham os mesmos signos.
Fico pensando como duas pessoas que falam línguas diferentes podem ter um relacionamento, e o quanto precisamos da língua para nos relacionarmos com as pessoas todas. Que signos são entendidos por todo mundo, e o quanto você é desarmado quando não compartilha os mesmos signos que o seu entorno. Você não tem nada a fazer a não ser esperar ir conhecendo devagarinho os signos alheios. Enquanto você está deslocado, eles não sabem como você lida com a sua cultura, só sabem que você não conhece a deles. "Em português eu não sou tão estúpida, sério", é o que dá vontade de dizer.
Mas não adiantaria, os seus signos incompartilháveis não são tão bons quanto os deles e o paliativo é dizer sempre "pardon pour mon français, je suis en train de apprendre", daí eles ficam todos contentes e até te ensinam alguma coisa.

sábado, 1 de setembro de 2012

Novo albergue

Desde Fourviére, um tanto de coisinha aconteceu. (Mas o cartão postal, ainda não postei! Falta grave)
Tive que mudar de albergue porque aquele estava cheio. Vim para uma casa de um francês que abriga pessoas na casa dele por um preço razoável. É um quarto com seis pessoas, mas é bom. A gente fica bastante na sala e convive mais com essas seis pessoas. Quando eu cheguei, encontrei uma moça que estava no mesmo albergue que eu, antes. Estamos todos os 6 procurando lugar para morar, e provavelmente olhando os mesmos anúncios. Pareceria uma boa solução alugarmos um lugar juntos, mas desconfio que não, porque há muitas burocracias para alugar um lugar aqui. Há burocracias para qualquer coisa. Estou muito perdida e aflita com o fato de ainda não ter casa, por isso faltei em dar notícias. É ruim fixar as coisas difíceis numa notícia que vai durar mais do que a própria dificuldade das coisas. O bom era eu resolver logo e poder dizer que eu achei um lugar e ele é bom, etc. Mas enquanto isso não acontece, não adianta muito eu não dizer nada, né? Além disso, mesmo estando um pouco nervosa, tenho feito coisas muito legais!
Anteontem comprei um celular aqui, numa espécie de camelô. Comprei um desses celulares espertinhos que acessam a internet e tudo, mas tem o teclado pequenininho. Tive que negociar em francês, fui na mesma loja umas três vezes. Não sei se fiz um bom negócio, mas o celular é legal. As poucas fotos que tirei não ficaram muito boas, pelo menos na tela dele, por isso não passei nenhuma para cá ainda.
Huyen, uma tímida resenhista culinária vietnamita
Fotos legais são as que uma amiga vietnamita tira, tem três aqui para vocês verem. Fiz amizade com ela em algumas horas - ela também dormiu aqui na casa em que estou, muito simpaticamente disse que ia passear e perguntou se eu queria ir com ela. Eu realmente não conseguia entender o inglês dela, mas achei que seria ótimo ir. Ela trabalha com resenhas de comidas! Daí fui aproveitar os conhecimentos dela. A gente foi a um restaurante na parte antiga da cidade. Acho que as pessoas esperavam que falássemos francês, ficaram um pouco decepcionadas, mas depois que pagamos a conta, agradecemos e pedimos desculpa pelo nosso péssimo francês, elas sorriram, então foi bom. Ah, e a refeição me deixou muito feliz na verdade. Huyen escolheu um pato ao vinho com batatas e uma salada lyonesa, e nós dividimos. 
Huyen insistiu em me usar como
modelo no ponto de ônibus
Depois pegamos chuva para ir até o ponto de ônibus e ficamos tirando fotos enquanto esperávamos.
Foi uma ótima noite.
Ontem Huyen foi para Milão conhecer as comidas de lá, eu passei o dia procurando como que "repúblicas" na internet. Saí para almoçar, encontrei uma padaria e pedi um sanduíche de salmão. Não imaginei que o salmão estaria cru. Confesso que foi um tanto difícil comer o sanduíche inteiro, peixe cru é algo que não foi feito para o meu metabolismo, parece.
O clima de Lyon parece meio maluco. Saí de casa com o vestido da foto, fiquei menos de uma hora fora, ia passar num supermercado na volta, mas foi impossível. Uma nuvem veio com umas gotinhas de água e trouxe um vento congelante! Eu literalmente corri para casa, com muito muito frio. Coloquei outra roupa e pude sair de novo. foi engraçado. Eu costumo dizer que São Paulo é assim, mas nunca vi uma mudança climática tão rápida.
Ontem o dono da casa em que estamos, Romain, reclamou de nossas comidas congeladas e disse que teríamos uma boa surpresa hoje. No café da manhã, de fato, tivemos um almoço! Dois tipos de macarrão, quatro de queijo, uma torta, pães, salada, geléias, leite, suco, chá, café e até sobremesa! Romain disse que isso era comida francesa. Todos nós adoramos, evidentemente.
Eu tinha combinado de ver duas casas, e perguntei para a Lada, da Rep. Tcheca, se ela queria ir comigo. O inglês dela eu entendo um pouco mais facilmente do que o da Huyen, então a gente pode conversar um pouco mais. Andamos pela cidade a tarde toda. As casas não foram muito promissoras, tenho falado com o Joaquim, para ter informações (ele ainda diz que pareço uma camponesa portuguesa, de tão burrinha), ele diz para eu esperar, que acharei coisa melhor.
Lyon à noite, foto de Huyen
Numa dessas noites na casa do Romain, ele me chamou para ir na casa de um dos amigos dele. Aqui na casa dele mesmo, só falamos inglês - acho que falei mais inglês do que qualquer outra língua até agora. Lá na casa de seus amigos, eram todos franceses, então pude ouvir as conversas entendendo metade do que eles falavam, foi bem legal, e muito simpático da parte do Romain ter me chamado. Me senti bem.
Tenho achado o francês cada vez mais bonito de se ouvir, não vejo a hora de sair por aí falando!
E também tenho aprendido a não entender o que as pessoas dizem. Não é tão fácil quanto parece, mas você percebe que precisa se conformar. Você aprende a, assim que capta o espírito da frase, livrar a pessoa da repetição infinita que seria necessária se você quisesse entender todas as frases.
Ainda é difícil para mim, porque eu gostaria de entender tudo, mas é como um tratamento de choque: estou há muito tempo sem entender muita coisa. A gente se acostuma. E diz "oh, oui", "oui, ça va", "non, merci". E acabou a conversa. (Assim, quase que na vírgula.)